01 maio, 2011

O “comunismo crítico” de Antonio Gramsci por Marcos Aurélio da Silva

Domenico Losurdo. Antonio Gramsci, do liberalismo ao “comunismo crítico”. Trad. Tereza Otoni. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

 
É comum na esquerda brasileira e, sobretudo, entre jovens intelectuais encontrar resposta aos males que nos afligem na crítica acerba das heranças políticas do liberalismo e dos valores democráticos de que é portador. Nada mais distante do pensamento de Gramsci. Para Domenico Losurdo, no livro em tela, Gramsci está entre os marxistas em que o problema da herança das revoluções democrático-burguesas é dos mais valorizados. 

Com efeito, demonstra o capítulo I, já no início de sua vida política e intelectual —entendendo carregar a citada filosofia, dentro de si, desde o começo, o socialismo, sendo ambos, nesse sentido, sinônimos de modernidade —, soube Gramsci apegar-se aos principais expoentes do liberalismo italiano, destacadamente Benedetto Croce e Giovanni Gentile. E isso para criticar a cultura católica mais reacionária — bem demarcada no documento pontifício Syllabus Errorum de 1864 —, antagônica ao Estado nacional saído do Risorgimento — o movimento de constituição da Itália moderna, consolidado em 1870 — e todo o progresso social que o acompanha, assentado na liberdade de expressão e consciência, na igualdade jurídica entre nobres e plebeus, na escola pública e na visão do Estado como origem e fonte de todos os direitos. 

Ademais, distanciando-se do pensamento positivista, que interpretava os problemas do atraso do Sul italiano (Mezzogiorno) em chave naturalista — também presente nos paradigmas antropológicos, como na atribuição do atraso irlandês ao “caráter céltico”, “de espírito indisciplinado e estranho à organização”, feita por Guglielmo Ferrero, ou na atribuição de “indolência” e “inveja” aos povos do Sul da Europa por John Stuart Mill —, tais expoentes italianos do liberalismo e da modernidade não podiam senão chamar a atenção do provinciano Gramsci, que acabara de sair da pobre Sardenha. 

É certo que esta valorização das conquistas do liberalismo em Gramsci não está isenta de problemas. E isto aparece na visão um tanto oleográfica com que — seguindo, aliás, leitura recorrente no marxismo, não raro afeito à propaganda liberal — glorifica os EUA, sem se dar conta da discriminação racial, ou ainda a Inglaterra, sem atentar para a restrição censitária ao sufrágio, a presença de restos do Antigo Regime e, mesmo, a opressão sobre a Irlanda — enquanto o jacobinismo francês é ainda visto negativamente, como “uma visão messiânica da história”, com a “pretensão política de suprimir toda a oposição”. Aliás, por isto a condenação da I Guerra por Gramsci não envolve, ainda, nesta fase juvenil, o mundo liberal e anglo-saxão.
Mas é justamente a propósito da Guerra, e também da Revolução de Outubro que lhe é contemporânea, que aparece com mais nitidez o distanciamento de Gramsci em relação aos pensadores do liberalismo italiano, tema do capítulo II. De fato, enquanto Gramsci exalta a Revolução de Outubro, que emerge na luta contra a guerra, vendo-a ademais como um capítulo da luta contra o colonialismo, Croce e Gentile, ainda que durante o conflito não se deixassem arrastar pela leitura teológica que via na guerra uma cruzada democrática, não se põem à altura de rechaçar totalmente a incitação chauvinista das massas que esta leitura implicava. É que seu internacionalismo, assevera Gramsci, limitava-se ao campo das ciências e das artes. Em especial, Croce, já em pleno fascismo, e não obstante em oposição ao regime, aparece como admirador da unidade nacional alemã, que a seus olhos lograra eliminar os conflitos de classe. Trata-se, pois, da adesão a um socialismo de caserna, o qual se serve da leitura da guerra como “fornalha da união” nacional. Já Gentile vai mais além, apresentando-se mesmo como entusiasta da intervenção, posição a partir da qual adere ao fascismo. 

Tais posições, que a rigor operam uma singular inversão, pela qual o marxismo aparece como celebração da guerra e do conflito, têm suas raízes filosóficas, destaca Losurdo, em uma enviesada leitura de Hegel. É esta a tese do capítulo III. Trata-se, antes, como ali assinalado, de uma leitura de Hegel a partir de Fichte, o filósofo da ação e do agir, como o fizeram os jovens hegelianos, ocupados em recusar uma posição de passiva contemplação, oriunda da identidade, em Hegel, entre o real e o racional. Distante deste caminho está Gramsci, insiste o autor. Rejeitando a leitura vulgar de Hegel que associa o real à empiria imediata, e valorizando o famoso prefácio da Contribuição à crítica da economia política, Gramsci apega-se, antes, à dimensão estratégica do real e à tendência de fundo do processo histórico, para só a partir daí insistir que o racional e o real se identificam. 

É nesta chave que se deve ler ainda a presença do sujeito histórico, se se busca um antídoto ao subjetivismo fichtiano. Com efeito, no Hegel da Fenomenologia do Espírito, o sujeito e a práxis histórica estão inseridos na objetividade: “Se o negativo ‘aparece como desigualdade do Eu com relação ao objeto, ele é também a desigualdade da substância em relação a ela mesma. O que parece produzir-se fora dela, e ser uma atividade contra ela, é seu próprio operar, e ela mostra ser essencialmente Sujeito’”. Vê-se, pois, a quanta distância estamos da ação cega que caracteriza as tantas filosofias do sujeito, mesmo que nem sempre associadas ao fascismo. 

Assim é que, a despeito do exagero em sugerir Nietzsche como um fascista avant la lettre, Gramsci parece reter o essencial ao associar o Duce aos “tantos fantasiados nietzschianos revoltados verbalmente contra tudo o que existe”, e bem o comprovam o programa fascista de 1921, com sua referência ao Homo Rusticus como a mais sadia variedade do Homo Sapiens e, já em pleno regime mussoliniano, a apologia de uma nova civilização rural, numa crítica veemente do moderno que, lembra Losurdo, está em estreita conexão com o Heidegger — que iria aderir ao nazismo, vale lembrar — da crítica do esquecimento do sujeito e da modernidade como desenraizamento e abandono do ser.
Não surpreende, portanto, que a Primeira Guerra seja um momento de prestígio de Fichte, tanto quanto a malograda revolução alemã de 1848, quando a impaciência da juventude revolucionária chegou a apoiar-se até mesmo em Schelling, chamado a Berlim pela reação — o mesmo Schelling anti-Hegel, de retórica anticomtemplativa, insiste Losurdo, que chega a exercer influência sobre Bakunin. Assim também é que, na Itália, Gentile exerce mais influência que Croce sobre toda uma geração de revolucionários, no fundo apenas agitadores que, operando uma separação entre domínio prático e domínio teórico, procedem a uma liquidação epistemológica do socialismo e do marxismo.
Não obstante, vale lembrar como Gramsci, enfatizando a unidade dialética entre sujeito e objeto, a concretude da história e das relações políticas e sociais, a categoria, enfim, da contradição objetiva, no esforço de superação do idealismo italiano (Croce, Gentile) — no que repete o que fizera Marx em relação aos jovens hegelianos —, não esquece a crítica ao marxismo do determinismo tecnológico (Bukharin), tão apegado a um sujeito mítico e metafísico (a ênfase no instrumento de trabalho, que no fundo dá lugar à doutrina da inércia do proletariado) quanto aquele idealismo (com sua valorização da autoconsciência do sujeito). 

Mas como, afinal, a concretude da história, em Gramsci, permite ler a Revolução de Outubro? Como o comunista sardo se posiciona diante da teoria da revolução em Marx, Engels, Lenin, Trotski? Losurdo assinala, no capítulo IV, a existência em Marx de pelo menos duas leituras da revolução. Uma, mais mecanicista, presente no capítulo XXIV de O capital, resulta da imediata conclusão do processo da acumulação primitiva, estando ausentes, insiste Losurdo, a política, as peculiaridades nacionais, os fatores ideológicos e a própria consciência revolucionária. Outra, mais concreta, que aparece no prefácio da Contribuição à crítica da economia política — e mesmo se igualmente decorrente do agravamento da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, presente na primeira leitura —, insiste não em uma única revolução, e menos ainda no caráter imediato do processo, mas antes na ideia de “uma época de revolução social”. 

Ora, Gramsci, tendo vivido a tragédia da derrota do movimento operário e a vitória do fascismo, rompe facilmente com as esperanças de um rápido e definitivo desfecho da revolução socialista. Nosso sardo, destaca Losurdo, é o primeiro a perceber estas duas versões marxianas e, não por acaso citando recorrentemente o famoso prefácio, o que mais decididamente aprofundou o caráter complexo e de longa duração do processo, como se observa nas passagens dos Cadernos do cárcere em que destaca as oito décadas de duração da Revolução Francesa e a referência ao fato de que a passagem do capitalismo à sociedade regulada (o comunismo) durará séculos. 

Todavia, não significa o acima dito que Gramsci pode ser lido na linha de Bernstein e da II Internacional, afinal tributária da leitura mais mecanicista que Engels extraiu de O capital para interpretar a derrota dos camponeses na Alemanha (Müntzer), bem como o malogro da revolta operária na França de 1848 — ausência de condições objetivas, insistirá Engels. Distante deste Engels, aliás utilizado pelo revisionismo na crítica da Revolução de Outubro, Gramsci partirá de uma releitura crítica de Marx que lhe permitirá mesmo superar as deficiências da teoria da revolução permanente de Trotski. Com efeito, as deficiências de Trotski decorrem do apego ao que Marx escreveu sobre a revolução agrária e nacional na Irlanda (no Manifesto esta possibilidade aparece também para a Alemanha), vista como uma manifestação, na extremidade do corpo burguês, da contradição das forças produtivas e relações de produção na metrópole, o que significa pensar a revolução na periferia como prelúdio da revolução no capitalismo mais avançado. Daí, pois, Trotski concluir pela impossibilidade da revolução em um só país. Ora, é opondo-se a esta variante do mecanicismo, e em defesa da Revolução de Outubro, que Gramsci irá insistir na longa duração da revolução no Ocidente e seu caráter de guerra de posição — uma leitura, diga-se, bastante distante da Internacional Comunista, que, desvalorizando a questão nacional, se apresentava como um partido comunista mundial, rigorosamente centralizado. 

Partindo da ideia da longa duração da revolução, Gramsci não se deixa contaminar pela tese da decadência ideológica da burguesia, desenvolvida por Marx após a derrota da Comuna de Paris e de nítidos ecos na tese leniniana da putrefação do capitalismo na fase imperialista. Não partilhando deste catastrofismo, que vê no longo período citado apenas uma contrarrevolução (catastrofismo de certo modo justificado pela reação encarnada em Napoleão III e pela ascensão do fascismo, que caracteriza o período em que Lenin redige o Imperialismo), Gramsci irá tratar este processo como revolução passiva. Trata-se de uma análise que se aproxima mais do Marx do Manifesto, que vê na incessante transformação tecnológica da época burguesa um processo de emancipação intelectual de amplas massas, ou mesmo do Marx mais maduro da Crítica ao Programa de Gotha, que critica Lassalle por este não ver que a burguesia não pode ser considerada uma massa homogeneamente reacionária, como os senhores feudais — tese talvez aplicável somente à burguesia alemã, incapaz, em oposição à sua congênere francesa, de criticar a restrição censitária dos direitos políticos, uma bandeira jacobina. 

Operando aqui no registro de um difícil equilíbrio entre crítica e legitimidade do moderno — donde a expressão “socialismo crítico” ou “comunismo crítico” —, vê-se como o marxismo de Gramsci está distante de tantos representantes do marxismo ocidental, não raro afeitos a uma crítica liquidacionista que antes lembra o anarquismo de Bakunin, tão empenhado em combater indistintamente a riqueza burguesa e a ciência burguesa, lembra Losurdo. É também por este difícil equilíbrio entre a crítica e a legitimidade do moderno que está posta, em Gramsci, a questão do Estado e sua extinção, tema do capítulo V. Nosso sardo, evitando o mecanicismo que entende as instituições políticas como simples superestruturas da economia, é, segundo Losurdo, o mais crítico, no marxismo do século XX, das tendências anarquistas e escatológicas nele, marxismo, presentes — como se pode observar até mesmo no Lenin de O Estado e a Revolução (veja-se a tese da identidade entre anarquistas e marxistas quanto ao Estado como um ente parasitário, perspectiva, todavia, compreensível à luz da conjuntura em que escreve Lenin, qual seja, a da luta contra o social-chauvinismo).

Gramsci está, pois, quanto a esse ponto, mais próximo da Ideologia alemã, obra em que Marx e Engels assinalam ser objetivo do Estado não apenas o controle e a repressão das classes subalternas. Nesta obra, afinal fundadora do marxismo, o poder e o interesse das classes dominantes não se exprimem de modo imediato, mas antes através de sua forma geral, a elas, classes dominantes, conferida pela ação estatal. Compreende-se: a forma geral em que o Estado se apresenta, lida por Marx e Engels em chave hegeliana — como também o fez o Lenin dos Cadernos filosóficos —, mesmo não sendo a substância do Estado, não figura como um “nada”, exprimindo, antes, nesta sua aparência, também um nível da realidade, nível ademais capaz de impor um limite ao exercício do poder das mesmas classes dominantes.
Daí a tese da extinção do Estado, tão cara ao marxismo na teorização da sociedade comunista, aparecer a Gramsci como extinção do aparato de repressão, enquanto se afirmariam, numa linha que está mais para o Marx da Crítica do Programa de Gotha — para quem no comunismo as funções do governo se transformam em simples funções administrativas —, os elementos da sociedade regulada, ou Estado ético, ou sociedade civil. Mesmo as declarações acerca da sociedade comunista, como aquela do desaparecimento do Estado e de sua absorção na sociedade civil, só aparentemente podem ser lidas como ambíguas, já que para nosso sardo sociedade civil é também Estado, valendo lembrar, a respeito, sua crítica quanto a transformar uma distinção metodológica em distinção orgânica.
Ademais, para Gramsci, a unilateralidade do conceito de Estado pode mesmo levar a erros colossais, como o da identificação da violência apenas no Estado enquanto tal e a celebração da sociedade civil como o lugar unívoco da liberdade. Na verdade, em Gramsci, o comunismo como sociedade regulada está posto na mesma dimensão do “Estado sem Estado” de Hegel — uma forma de superação do estado da natureza, da anarquia e da violência própria da sociedade de classes. Daí, segundo Losurdo, Gramsci ter sido o único a concluir de modo explícito que anarquia se associa ao liberalismo, não ao socialismo. Bakunin, que se inspirara em Proudhon — tanto quanto este em Tocqueville, ou pelo menos no clima que o inspirou —, brada contra os socialistas de Estado e os jacobinos, acusados não apenas de estatismo, mas de sacrificar a liberdade em nome da igualdade. E o sindicalismo apolítico de Sorel se refere aos jacobinos no mesmo tom, no que foi criticado por Gramsci, que aqui se afasta de sua posição original para lembrar a distinção entre um jacobinismo nacionalista, bélico, e outro histórico e autêntico, de cunho popular, entendendo a liquidação sumária deste último como uma subordinação ideológica à burguesia liberal. Daí que, para Gramsci, “fetichismo sindical e economicista”, “antijacobinismo”, “economicismo puro” e “liberalismo radical” são, ou tendem a ser, a mesma coisa. 

Curioso, todavia, esposa Losurdo, é como as influências anarquistas penetraram no marxismo a ponto de tornar problemática a principal experiência pós-capitalista no século XX, que terminou por assumir formas autoritárias. É que além das condições objetivas, muito da teorização marxista que informou a construção da nova sociedade esteve inspirada no par anarquismo/mecanicismo, como denota a proclamação, entre expoentes do socialismo no pós-1917, de que a ideia de Constituição, de norma jurídica, era uma ideia burguesa, ou mesmo a ilusão quanto à equivalência entre desaparecimento das classes e desaparecimento do Estado. No mesmo sentido aparece a questão da nação e a do mercado. E também aqui Gramsci é o que tem mais clareza, afirmando, em polêmica com um interlocutor anarquista ainda antes da prisão, que no pós-capitalismo desaparecem os “Estados nacionais capitalistas”, mas não todo e qualquer Estado nacional — tese reafirmada nos Cadernos, quando insiste que o internacionalismo de um comunista, para ser consistente, deve ser profundamente nacional. Já o mercado, insiste nosso sardo, é sempre historicamente determinado, estando sua configuração concreta em estreita dependência de uma determinada superestrutura política, moral, jurídica — enfim, uma categoria que deve ser declinada no plural.
Ora, por tudo isso, dificilmente, insiste Losurdo, Gramsci poderia ser classificado como um representante do que Perry Anderson chamou de “marxismo ocidental”. É que Gramsci, notadamente nos Cadernos, distanciando-se da crítica niilista do passado, tão presente neste marxismo — um Gramsci para quem contou certamente o contexto histórico-geográfico em que viveu, a saber, o de um país de tradição liberal que se confronta com Marx para superar o Syllabus e o Ancien Régime —, vê a “filosofia da práxis” como o coroamento de um longo processo histórico. E este processo, partindo da revolução francesa e do jacobinismo, encontra sua expressão teórica mais acabada na filosofia clássica alemã, e notadamente em Hegel, lido como a consecução e o ponto mais alto da modernidade. Uma leitura, pois, ainda mais avançada que a de Lenin, que assume o grande filósofo apenas como um teórico da dialética. Daí a dificuldade de encontrar em Gramsci, insiste Losurdo em chave autocrítica, a ideia do caráter apenas formal da democracia burguesa, o que afinal resultou, na experiência do socialismo real, em esvaziar de significado o exercício, por parte de todos, dos direitos democráticos. 

Com efeito, Gramsci parece reter a advertência de Marx, feita no prefácio da segunda edição de O capital, quanto à importância da “pesquisa desinteressada” e da “livre pesquisa científica” — abandonada pelos “espadachins assalariados” —, para insistir que, distante de qualquer caráter indiciatório — facilmente identificável na crítica niilista, diríamos —, a discussão científica implica a incorporação, como um momento subordinado, do ponto de vista mesmo do adversário, condição sine qua non da conquista da hegemonia da classe revolucionária. Trata-se, pois, numa linha que segue o conceito engelsiano de ideologia como “falsa consciência” — as verdadeiras forças motrizes do processo social permanecem estranhas ao pensador —, do esforço de garantir a compreensão da objetividade do ser social para fazer justiça a ambas as partes, algo absolutamente ausente em toda a crítica subjetivista — por exemplo, o marxismo da decadência ideológica, afinal tributário do anarquismo —, presa à ideia da subjetividade insincera e corrupta dos autores burgueses. Demais, na percepção de Gramsci, é esta também a limitação do sindicalismo, que não sabe sair do primitivismo (a fase corporativa) para alcançar a hegemonia ético-política, processo só possível, afinal, se se tiver a teoria revolucionária como autorreflexiva. 

Mas é aqui também que se põe o problema da formação, para o proletariado, do próprio grupo dos intelectuais independentes e do partido político autônomo, forma de superar o assédio das classes dominantes — Pareto fala em recrutar os elementos raposeiros e de instintos belicosos, acenando, entre os últimos, para o sindicalismo — por meio da promoção, entre os intelectuais, de uma difusa tendência de esquerda e até de uma adesão ao programa e à doutrina do proletariado. E, nesta mesma direção, ainda mais decisiva é a elaboração dos intelectuais orgânicos. Na medida em que o grupo dos intelectuais formados no interior do marxismo não tem suas origens ligadas ao povo — oriundas, antes, tais origens, na pequena e média burguesia, classes às quais, por interesses no mais das vezes ligados à promoção social, podem voltar nas grandes crises históricas (Benedetto Croce, por exemplo) —, é crucial ao proletariado criar a sua própria categoria de intelectuais orgânicos. Estes devem estar ligados a ele não só pelas ideias, mas também pela extração social, para o que é necessário proceder a uma catarse cultural e política, maneira de se libertar do espírito corporativo, o que ademais é uma outra forma de colocar-se permanentemente o problema da herança.

Do mesmo modo, o caráter fortemente autorreflexivo do marxismo de Gramsci, diretamente tributário da valorização das heranças da modernidade advindas da ruptura com o Ancien Régime, aparece como a melhor chave para a reconstituição histórica dos regimes saídos da Revolução de Outubro. Nesta reconstituição é preciso não permanecer apenas no interior do movimento comunista, o que significa exigir dele que saiba medir-se com o Ocidente — atendo-se, pois, às questões concretas do Estado, da nação, do mercado, forma afinal de afastar-se do materialismo vulgar que termina por reduzir o marxismo a simples apêndice da cultura da classe dominante. Mas é também o próprio Ocidente, adverte Losurdo, que precisa ser lido a partir de um quadro histórico unitário, já que a Revolução de Outubro influenciou, ela mesma, o próprio Estado social do capitalismo avançado — bem demarcado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela ONU em 1948 —, sem falar na onda de descolonização vivida pelo Sul e o Oriente, parte do mesmo quadro histórico unitário. 

E, esposa Losurdo, é ainda o problema da herança que está posto, se se quer pensar os debates que estiveram presentes ao tempo em que triunfou a Revolução de Outubro, afinal decisivos também para se compreender o curso seguinte do processo revolucionário. Estamos aqui diante de uma interpretação de grande originalidade. Com efeito, não se trata de ignorar que Gramsci — numa linha que certamente provém do Lenin que fala com entusiasmo em “via americana”, como em O programa agrário — destaca-se por reconhecer e aprofundar o grau diferente e superior do desenvolvimento histórico do Ocidente, donde as lições, para um projeto revolucionário realmente mundial, quanto a observar as peculiaridades das diferentes áreas e entender o processo não só como ruptura, mas também continuidade do desenvolvimento histórico da humanidade. 

Todavia, e aqui o que há de original, não significa isto que a dicotomia marxismo ocidental/marxismo oriental corresponda mecanicamente à dicotomia hegemonia/ditadura. Gramsci, insiste Losurdo, apoiou a dissolução, pelos bolcheviques, da Assembleia Constituinte que se opunha aos sovietes, na mesma medida em que se opôs à ameaça de dissolução dos organismos representativos na Itália pelo reformista Bissolati, justamente porque, nos dois casos, estava na ordem do dia opor-se a lançar o proletariado à guerra. Para os sovietes tratava-se de um episódio de liberdade, não obstante as formas exteriores que assumiu, decorrentes do confronto entre duas formas de legitimidade que se digladiavam desde fevereiro de 1917, enquanto a ameaça de golpe na Itália encarnava de modo exclusivo o princípio da legitimidade. 

Neste ponto, assinala Losurdo, Gramsci revelou estar atento a um sentido mais concreto da realidade do que Rosa Luxemburg, que condenou a dissolução da Assembleia, não compreendendo não se tratar da opção ditadura versus democracia, mas ditadura versus ditadura, como se poderia facilmente observar atentando para as manobras do imperialismo contra a Rússia. O curioso é que a mesma Rosa condenou a reforma agrária bolchevique como pequeno-burguesa, bem como convidou o novo governo a sufocar com mão de ferro qualquer tendência separatista. Ora, não estaríamos aqui diante de um mecanicismo caro aos tantos jovens — alguns nem tão jovens — da esquerda contemporânea, por vezes mesmo revelado sob a forma de um gritante messianismo escatológico, dado a desvalorizar o papel do mercado e da nação? E não é mero detalhe lembrar, como o faz Losurdo, que a virada staliniana que marcou a tragédia do socialismo real — e isso a despeito do contexto histórico em que ela deve ser lida, a saber, o perigo iminente da agressão nazifascista —, de algum modo teve início e se alimentou justamente destes equívocos quanto à questão camponesa — bem demarcada na supressão da NEP e da organização de um mercado que ela implicava — e nacional. 

Aqui também não deve faltar a crítica aos intelectuais dos antigos Partidos Comunistas do Leste, por demais deficientes teoricamente, já que preocupados burocraticamente apenas com suas carreiras. A recente película A vida dos outros — no original em alemão Das leben der anderen —, de Florian Henckel von Donnersmarck, nos ensinaria alguma coisa a respeito? 

Marcos Aurélio da Silva é professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geografia da UFSC (área de concentração Desenvolvimento Regional e Urbano).
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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.